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Improvisação, abertura e escrita em Conjuntos, para flauta e piano
Breve comentário por Nariá Assis.
Conjuntos é uma peça composta em 2010, fruto de um trabalho de colaboração meu com a flautista Marina Bonfim. A premissa inicial desta composição foi combinar, entre as partes do piano e da flauta, trechos totalmente escritos em partitura convencional com trechos que comportam alguma abertura e espaço para improvisação. Esta combinação ocorre de forma alternada durante a peça ao longo de quatro partes, conforme o esquema observado na Tabela 1.
Modelo formal / instrumento |
Parte 1 |
Parte 2 |
Parte 3 |
Parte 4 |
Flauta |
Escrita convencional |
Escrita aberta / Guias de Improviso |
Escrita aberta / Guias de Improviso |
Escrita convencional |
Piano |
Escrita aberta / Guias de Improviso |
Escrita convencional |
Escrita aberta / Guias de Improviso |
Escrita convencional |
Tabela 1
Esta estratégia resume-se em dois objetivos principais: a) permitir a exploração de formações rítmicasnão convencionais, uma vez que a abertura e o caráter improvisado manifestam-se sobretudo no parâmetro do ritmo; b) experimentar outras formas de interação em música de câmara, especificamente a improvisação livre[1] em conjunto, e a capacidade de reação a uma parte musical escrita através do improviso.
De modo a permitir o alcance do objetivo (a), as partes a serem improvisadas contém “guias de improviso” que funcionam de maneira quase idêntica tanto para a flauta quanto para o piano. Trata-se de uma seleção de alturas, delimitadas por uma chave, acompanhadas de indicações verbais (tanto na partitura mesmo quanto através de uma Bula) e de duração global (quantos segundos deve durar a sessão).
A diferença entre o guia de improviso do piano para o da flauta expressa-se em relação à função do improviso dentro da dinâmica do duo. No caso do piano, a parte improvisada funciona como uma base harmônica para a linha melódica da flauta, já no caso da flauta, a parte improvisada opera de maneira mais contrapontística com a parte do piano.
Em ambos os casos, não é incentivado que a pessoa que improvisa busque estabelecer padrões que levem ao estabelecimento de sensação de pulsação ou métricas tradicionais como binária/ternária, simples/composta. O objetivo da abertura no campo das durações é que a resultante das interações improviso / escrita convencional seja de uma rítmica não facilmente identificável em termos de métricas tradicionais.
Em relação ao objetivo (b), busquei explorar o campo da abertura e indeterminação em música, propondo ao intérprete reagir a trechos sonoros tendo como ponto de partida algumas orientações. Este processo deve acontecer durante a montagem da peça, de modo que as condições ideais para tal ocorram quando os intérpretes não ouvem uma gravação prévia da peça antes de iniciarem as experimentações com as partes de improviso.
Esta combinação entre partes escritas e partes improvisadas ocorre somente nas partes 1 e 2 da peça. Na parte 3 ambos os instrumentistas improvisam ao mesmo tempo sob orientações e conjuntos sonoros distintos. Nesse caso, espera-se que o acúmulo de experiência e entrosamento obtidos na montagem das partes 1 e 2 traga para esta parte uma certa organicidade. Isto porque os princípios que regem a improvisação na parte 3 não são tão distintos do improviso das partes anteriores, a novidade aqui é que não há mais reação a uma parte escrita e sim a construção de uma sonoridade nova.
Por último, na parte 4 a partitura é totalmente convencional. Interessou-me especialmente o contraste entre as partes 3 e 4, em que os intérpretes passam de um modo de atuação musical baseado em improviso para um modo exclusivo de leitura de partitura tradicional. Duas perguntas aqui se fazem: qual é o efeito desta mudança para a sonoridade geral? Ou melhor, é possível identificar quando os instrumentistas improvisam e quando tocam trechos perfeitamente ensaiados anteriormente?
Conjuntos de notas
A seleção de alturas que compõem cada seção da peça foi orientada pelo uso de conjuntos determinados de notas, que formam-se gradualmente. Ou seja, o conjunto não é apresentado por inteiro e sim vai constituindo-se pelo acréscimo de notas pouco a pouco. Isto fica bastante evidente nas seções de improviso do piano e da flauta, como indica a Tabela 2.
Forma / instrumento |
Parte 1 |
Parte 2 |
Parte 3 |
Parte 4 |
Flauta |
- |
dó mi sib + fá + lá |
mib mi lá si ré |
- |
Piano |
lá si ré + mi + sol# + fá# + sol |
- |
dó mib fá + ré mi + fá sol# si + sol lá (clusters) |
- |
Tabela 2
Nota-se que os conjuntos são quase sempre escalas pentatônicas, com exceção do piano na parte 1, que chega a articular uma escalaheptatônica. As partes escritas da flauta e do piano nas partes 1 e 2 também partem deste princípio de pequenos conjuntos e acréscimo gradual de notas, porém inicialmente contêm notas que contrastam com os conjuntos de improviso.
Na Tabela 3 percebe-se que, nos momentos iniciais da parte 1, há apenas a nota (si) coincidente entre os conjuntos da flauta e do piano, enquanto que no início da parte 2 há apenas a nota (si bemol) coincidente. Naturalmente, a medida que novas notas vão sendo acrescentadas haverá mais coincidências. Há ainda alguns elementos alegóricos, como trinados e pequenos motivos pontuais que aparecem ao longo das partes e não seguem rigorosamente a lógica apresentada na Tabela 3.
Seção / Instrumento |
Parte 1 |
Parte 2 |
Flauta |
fá# mi# dó# ré# si + lá# ré + sol# sol + dó |
dó mi sib + fá + lá |
Piano |
Lá si ré + mi + sol# + fá# + sol |
sib mib réb sol láb + fá + solb + si fá + la + |
Tabela 3
Na parte 3 o improviso do piano possui um caráter mais percussivo, especificamente pela presença dos clusters. A opção pelos clusters é uma forma de variar o modo de improviso do piano, que na parte 1 é mais voltado à formação de um “colchão harmônico” para a flauta, com as notas bastante espalhadas pela tessitura do instrumento. Já na parte 3, o piano deve improvisar com uma quantidade bastante limitada de ataques, apenas 2 pequenos clusters (divididos em 2 partes) que compõem um maior de 9 notas. Dessa forma, o pianista é incitado a explorar ritmicamente com um material restrito e propício a uma articulação monótona.
A última parte, toda em escrita convencional, apresenta uma organização das alturas menos estruturada e mais aleatória. Esta parte deriva de vários elementos melódicos e harmônicos já apresentados nas partes anteriores, recombinados e alterados. Alguns exemplos são o uso dos clusters e do motivo rítmico, presentes no piano na parte 3; e do motivo melódico [lá-sibemol-solbemol-lá], presente no piano na parte 1 e agora transcrito para a flauta.
Abertura e autoria
Embora a partitura atual da peça esteja bastante carregada de orientações e delimitações, há que se dizer que este processo ocorreu de maneira muito gradual. Em princípio, as partes improvisadas não possuíam suporte visual, eram tocadas de memória por mim. Com o tempo, houve necessidade de escrever as bases das partes improvisadas, porém apenas com o propósito de lembrete, sem intenção de que fossem tocadas por outros intérpretes e que para tal fossem autossuficientes em termos de compreensão da música.
Somente neste ano de 2022 foi necessário produzir uma versão completa que pudesse permitir a montagem da peça apenas com o suporte da partitura e da Bula. Entretanto, devido à margem ainda alargada de possibilidades que a combinação dos improvisos com a escrita convencional permite, penso que a autoria da peça deva acompanhar a sua abertura. Ou seja, o ponto de partida é meu e da Marina, mas o crédito de criação estende-se aos intérpretes a cada nova apresentação.
[1] Improvisação livre, neste caso, é aquela que não segue (e evita seguir) qualquer estilo de improvisação específico que reflita um universo sonoro bem delimitado, como por exemplo o jazz, o choro etc.
No seguimento da peça Carta a Kundera (escrita em 2007), Cartas a Mia (2012) representa a minha segunda homenagem a um escritor que, de uma forma mais ou menos indireta, tem estado presente na minha vida artística.
Mia Couto é natural de Moçambique e escreve, entre muitas outras coisas, acerca das lendas, motivações, depressões e sonhos do povo da sua terra.
Estas cartas não têm a intenção de ser descritivas mas… cartas. Como quem escreve uma carta a uma outra pessoa, estas falam mais do remetente do que do destinatário.
Para cada um dos primeiros 4 andamentos, inspirei-me em pequenas frases retiradas de diferentes livros de Mia Couto, completamente removidas do seu contexto original. O meu interesse nestas pequenas linhas foi principalmente fonético. Assim:
I. – …nem barulho nem era.
II. – …divagar, devagar…
III. - …se cintilhaçou em mil estrelinhações.
IV. - …o silêncio é música em estado de gravidez.
V. – Nota do tradutor
Açores, Descoberta de um novo mundo (2014) foi a primeira peça que escrevi para orquestra sinfónica. Quis nela ilustrar musicalmente a descoberta do arquipélago dos Açores em 1427, por Diogo de Silves. Esta obra tem assim um enorme significado para mim porque retrata um episódio seminal para a terra onde nasci.
Embora de curta duração (5’), devido a ter sido escrita para um concurso interno da ESML, a estrutura divide-se em alguns momentos contrastantes, sendo que a parte inicial possuiu um carácter calmo e liso que pretende descrever o mar em que navega Diogo de Silves. Segue-se o clímax da peça, onde a orquestra exibe uma sonoridade brilhante, sendo que esta secção triunfal procura ilustrar o momento da descoberta dos Açores.
Depois da secção da “descoberta” segue-se a descrição da paisagem verde e do mar que envolve as ilhas açorianas, através de um longo solo do fagote apenas apoiado pelas cordas e, por fim, surge a parte final da peça. Nesta parte final procurei reflectir o que se teria passado – psicologicamente – no espírito dos navegadores ao questionarem-se sobre o mistério do interior de cada uma das ilhas.
No entanto, esse mistério ficará – musicalmente – por resolver, uma vez que, não podendo a obra ter mais do que 5’, não tive ocasião de desenvolver o tema na sua plenitude, pelo que a peça termina de forma inconclusiva.
O “mistério” desta peça acabou por ser concluído noutra obra que escrevi em 2015 – “Uma Viagem no Atlântico” - cujo tema é a descoberta e exploração dos Açores, porém a obra nunca chegou a ser tocada.
“...from the last breath”
Nasce graças a uma série de acontecimentos negativos pela qual atravessei no de 2013 e 2014. Esta quer retratar um vasto número de sentimentos como sofrimento, dor, desespero; mas também mostrar uma que é possível erguer e continuar.
A peça conta com três secções interligadas entre elas: Primeiramente com uma parte lenta no início onde pretendo demostrar a instabilidade, o sentimento de sofrimento e dor. No entanto, ainda nesta secção uma “luz” ao fundo do túnel faz-se ver. Na segunda secção, uma parte contra-estante que mostra a sensação de ansiedade e inquietação. Finalmente a última secção onde pretendi retratar então uma imagem positiva, de continuação.
Centro
Concêntrico
Concentro
Com Centro
Sem Centro
Excêntrico
Ex-Centro.
Um objecto com um centro
Ou um ex-centro
Destabilizado.
Uma calma concêntrica
Ou uma energia excêntrica?
Atoms, particles, samples, grains, etc. Depending on the point of view everything can be one, or be one of many. A ray of light is one, but composed of many particles. This is true not only with light, but with everything we know about this physical world. A sound is a set of small particles, our own body is made of cells, our own society is composed of people, etc. Scientists will probably disagree with me, but since I can only conclude that reality depends on our perception. A set of sound particles, are they a single sound or a cluster of small joints? I don't know, it depends, from that, I just mused all this thought.
Finalist at the 1st Francisco Martins Award 2017 by the Orquestra Clássica do Centro.
Text and voice by Júlia Durand.
Written in 2017 as part of the composition portfolio of my first year (1º) of master's degree at the Escola Superior de Música de Lisboa.
Paralaxe é a diferença na posição aparente de um objecto observado de pontos de vista distintos.
Esta peça pretende estabelecer uma relação entre o material musical e o espaço de escuta. A partir da analogia entre a flauta e o corredor, a som desenvolve processos mais ou menos lineares de atraso e reverberação, convidando os ouvintes a percorrerem o espaço e alterarem o seu ponto de escuta. A alteração da perspectiva sonora, e a utilização de elementos arquitectónicos como fontes sonoras pretende integrar a própria arquitectura no discurso musical.
Instante, para orquestra e electrónica, resulta de uma encomenda da RTP/Antena2 para o Concerto de Gala do Festival Jovens Músicos-edição de 2011. Trata-se de uma peça relativamente curta (cerca de dez minutos), articulada em 6 secções contrastantes.
Desde o início do processo de composição que a ideia de "radiofonia" esteve presente. Esta ideia origina a secção inicial, totalmente entregue à electrónica, e projecta-se mais à frente na forma da peça, através de mudanças rápidas entre secções aparentemente contrastantes. A electrónica, tão presente na parte inicial, vai perdendo protagonismo, pontuando apenas algumas passagens, regressando perto do fim, já não em oposição com a orquestra, mas antes em complementaridade e fusão.
Como mudar instante a instante, sem no entanto perder o arco global que liga o inicio ao fim?
“(…) Tired with all these, from these would I be gone,
Save that, to die, I leave my love alone.”
(William Shakespeare, Soneto 66)
Notas Dispersas sobre “Six Portraits of Pain”
1. Esta peça tem uma relação com seis textos que escolhi. Não é uma peça programática no sentido habitual do termo (como poderia ser?) mas os textos habitam a obra. Estão escritos na partitura e aos músicos é pedida a sua leitura durante a execução. Dessa forma, cinco dos seis textos escritos na partitura existem na obra enquanto presença consciente nos músicos, mas não existem enquanto canto ou fala para os ouvintes. A única excepção é um fragmento de um poema de Anna Akhmatova. Os fragmentos que seleccionei provêm de diversos tipos de testemunhos escritos mas nem todos “literários” no sentido estrito – cartas a amigos, poemas, discursos, frases de livros - e expoêm diversos tipos de sofrimento existencial: perigos do pensamento livre, da dissidência, a perplexidade face ao estado do mundo, traumas decorrentes do inenarrável vivido e (sempre) a presença da morte. Como diz uma parte do texto de Thomas Bernhard “Esta dor constituíu-nos. Esta dor é agora o nosso estado de espírito”. A dor tanto é a dor poética como a dor descrita, vista, sentida ou imaginada...
2. A minha música é inquieta: interessam-me os gestos, a captação de forças, de intensidades. Morton Feldman dizia que para ele tudo era “object trouvé”, mesmo aquilo que ele pensava ter inventado. Os objectos que eu encontro são diferentes, mas às vezes caio igualmente na ilusão de os ter inventado. Há varios anos que falo de “objectos” musicais. E neste caso encontrei também uns poemas. Seria estranho que trabalhar tanto tempo com estes textos ao lado ou na memória não tivesse tido consequências, presenças, na música e no discurso. Tenho algumas convicções sobre este aspecto, poderia partilhá-las, mas nada me garante que não haja outras que me escapam. Escapam-me a mim, mas não escapam à peça.
3. Os Six Portraits of Pain são: 1. Espinosa/Deleuze 2. Thomas Bernard 3. Manuel Gusmão I 4. Akhmatova 5. Cadenza sopra Spinoza 6. Gusmão II e Coda: Paul Celan.
4. Os textos são sublimes. O primeiro que escolhi, de Gilles Deleuze - “Conta-se que Espinosa conservava o casaco rasgado pela faca assassina para se lembrar que o pensamento nem sempre era amado pelos homens” – é, de certo modo, o mais importante porque (me) lançou a obra para a questão fundamental da liberdade do pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias. Hesito ainda sobre a inclusão de todos os fragmentos literários nestas notas. A possibilidade da sua leitura poderia orientar a percepção da obra para a procura de uma “significação literal” que não existe, que não pretendi nem quero provocar inadvertidamente.
5. Principalmente porque a relação entre os textos e a música não é linear. Num dado momento tomei consciência de que a estrutura formal da peça apresentava relações internas mais complexas do que a sucessão de Seis retratos/andamentos, como se
durante o trabalho composicional cada texto/retrato/música tivesse ultrapassado a sua localização particular numa página e afectasse o todo de forma irremediável. Estabeleci uma rede de relações entre estes elementos e é dela que deriva a narrativa da peça.
6. Tenho uma posição peculiar em relação a concertos; o carácter habitual atlético- virtuosistico do papel do solista não me atrái. Frequentemente cede-se à tentação exibicionista. Tento sempre outro tipo de solução. Nesta peça há um solista, o violoncelo, dois solistas secundários, dois violinos, e ainda três percussionistas como dramatis personae musicais. Esta divisão (1+2+3=6) tem igualmente uma relação com os 6 retratos e uma tipologia privada das dores.
7. Esta peça dura entre 26 e 28 minutos. Depende dos tempos que forem realizados. Foi encomendada pela Casa da Música e estreada em 2005.
António Pinho Vargas, Março de 2005
Partitura atualizada disponível em: https://editions-ava.com/pt/six-portraits-of-pain-2
Textos dos Six Portraits of Pain:
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1 - Espinosa
"Conta-se que Espinosa conservava o casaco rasgado pela faca assassina
para se lembrar que o pensamento nem sempre era amado pelos homens."
Gilles Deleuze, Spinoza
2- Thomas Bernhard
"Durante este meio século todos nós
não fomos mais do que uma grande dor.
Esta dor constituiu-nos. Esta dor é agora
o nosso estado de espírito"
3- Manuel Gusmão
" e aberta ficou a boca
...os assassinos nem sequer lha fecharam..."
4- Akhmátova
Passei dezassete meses nas bichas da cadeia de Leninegrado.
Uma mulher atrás de mim, perguntou-me ao ouvido [...]
( ali toda a gente sussurrava):
Pode contar isto? Respondi: Posso.
Então, uma espécie de sorriso deslizou por aquilo
que outrora fora o rosto da mulher.
5 - Cadenza sopra Spinosa
6- Manuel Gusmão II
"Cada parede a que chego é agora sempre a última..."
Coda: Paul Celan
Vivemos sob céus sombrios e... existem poucos seres humanos.
Talvez por isso existam também tão poucos poemas.
As esperanças que me restam não são grandes; tento
conservar aquilo que me restou.
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