Sobre o processo de composição de Esconder-se no multiverso
Notas sobre o processo de composição de Esconder-se no multiverso
A criação artística e a composição em particular são uma forma especial de investigação, que envolve uma mistura de criação genuína, descobrimento (via referência ou intertextualidade) e técnica; além da procura de um significado ou, pelo menos, uma razão que nos motiva a criar. Nas seguintes linhas vou tentar expor como atravessei por alguns destes processos durante a composição de Esconder-se no multiverso.
No processo composicional é muito habitual tentar encontrar a coerência e a narrativa sonora a partir da ideia mais simples. Para mim estas ideias servem apenas de guia, pois acho que a música tem que ter sentido sem muito mais explicação. Achei que para Esconder-se no multiverso esta ideia podia ser uma que evocasse um jogo infantil, uma brincadeira. Concretamente estava a pensar no jogo do esconde-esconde, e para isso compus as primeiras notas do clarinete, que são uma nota comprida em crescendo que termina com outra em stacatto, uma 3ª menor acima. Estas notas são seguidas por um desenvolvimento de linhas de contraponto e harmonias verticais que são uma derivação mais ou menos próxima dessas primeiras notas, e que podem ser interpretadas como meninos a esconderem-se.
Se calhar a ideia de transportar esta visão tão concreta e simples do mundo de uma criança à imensidade do universo e, ainda mais, do multiverso!, pode ter sido influenciada pela minha própria fascinação pelo cosmos quando eu próprio era uma criança, algo que ainda agora me causa vertigem ao pensar na sua imensidão. A ideia não estava lá no momento de começar a escrever, mas foi-se pouco a pouco revelando, devido a várias características que a música estava a adquirir.
Uma dessas características é a da ideia da expansão-contração dalguns gestos musicais, que é análoga à vida dum suposto universo contido dentro de um sistema de universos, pois eles nascem a partir de uma singularidade (expansão) e muito provavelmente terminarão por colapsar de novo na singularidade (contração). Um destes gestos musicais é o do ritardando-accelerando, tanto a nível das linhas instrumentais individuais como do conjunto do ensemble. A nível macro-estrutural, também se pode apreciar esta expansão-contração como variações na densidade mais ou menos contínuas e progressivas, tanto no aumento da densidade como na sua diminuição.
A outra característica é a variação constante na densidade, que para mim é análoga à variação na densidade do próprio universo: grandes áreas de vazio e calma interrompidos ocasionalmente por um corpo ativo como uma estrela ou uma masa de estrelas, como uma galáxia, ou até um grande cataclismo cósmico.
Contudo, quis preservar a ideia de que no fundo esta viagem pelo multiverso é feita através de crianças (ou outros seres) a brincarem ao jogo do esconde-esconde, pois um multiverso permite muitos lugares para se esconderem e conta com inúmeras passagens através de portais compostos por pares de buracos negros e brancos que permitem navegar entre universos. As secções mais rítmicas dão conta do processo de procura e captura dos participantes, assim como as subidas de tensão do discurso musical.
Na questão estilística, esta peça é provavelmente a que melhor define a fusão entre o que eu era antes de entrar no ensino superior de música e aquilo que me transformou na minha passagem pela ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo). A minha formação anterior, ao contrário de muitos dos meus colegas, não foi em música clássica, mas em jazz. Entrar a estudar composição obrigou-me a pensar em termos harmónicos, rítmicos e texturais muito diferentes daqueles a que eu estava habituado. Porém, sempre achei que todas as formas de conhecimento musicais contribuem para o desenvolvimento da linguagem da música contemporânea, e por isso tentei incorporar elementos da música que tinha aprendido anteriormente à música que estava a fazer nos últimos tempos.
Como parte do meu processo de aprendizagem na ESMAE, transformei muito o meu estilo de composição. As minhas últimas peças anteriores a Esconder-se no multiverso procuravam texturas muito densas, algumas delas ajudadas pela electrónica, e com ritmos muito plásticos, afastados da música mensural com valores ou padrões rítmicos claramente reconhecíveis. No plano harmónico tinha-me afastado da música jazz com acordes claramente definíveis verticalmente e com uma função mais ou menos clara no contexto harmónico, para passar a pensar mais no movimento horizontal, no conteúdo espectral e na transformação da textura de uma massa sonora e na utilização de outros conjuntos verticais de sons que não se podem explicar a partir da harmonia funcional.
O desafio que eu encontrei com esta peça foi o de encontrar a síntese das diferentes sensibilidades musicais às que fui exposto durante a minha formação. Isto é porque esta fusão, ao meu ver, pode potencialmente ter como consequência a introdução de clichés ou passagens que pareçam mais cómicas que propriamente estilísticas, o que, embora não seja indesejável per se, não era de todo a minha intenção. O que eu procurava era a construção de um discurso musical coerente e coeso independentemente das diferentes técnicas utilizadas.
O processo de investigação não terminou com a entrega da peça ao maestro e músicos. Durante os ensaios, graças ao trabalho feito pelo maestro Bernardo Lima e os músicos do Ensemble de Música Contemporânea da ESMAE, foram apontadas algumas questões determinantes para a interpretação que iam além daquilo que estava escrito na partitura, mas que eram fruto de uma análise da música.
Por exemplo, o maestro destacou as variações de dinâmica das linhas individuais em texturas harmónicas de tipo espectral (nomeadamente na coda), percebendo perfeitamente que eram alguns parciais que tinham mais destaque sobre outros e fazendo a calibração e ajuste de dinâmica em consequência.
As características da escrita influenciaram o modo como algumas partes foram ensaiadas e interpretadas. Este foi o caso da secção de accelerando anterior à coda, que conta com uma base de swing da bateria. Nela, o maestro sugeriu que fosse o baterista que marcasse o accelerando, com ajuda do drive do swing. Isto pode ser algo habitual num conjunto de jazz, mas não num ensemble de música contemporânea sob a direção de um maestro, mas que entretanto resultou como mais natural neste contexto.
Se calhar, um dos momentos que resume este trabalho foi quando o maestro disse aos músicos “Isto é Pink Floyd!”, referindo-se à forma de encarar a interpretação, pois a linguagem da peça não tinha semelhanças com a música que os instrumentistas estavam habituados a tocar.
Por último, a modo de conclusão, acho que o resultado foi bem sucedido no sentido em que a investigação envolveu, como já tinha referido, criação, descobrimento e técnica, e que contou com um ponto de partida para lhe dar significado que se foi manifestando durante o processo de criação. Achei que o contexto do projeto e a disponibilidade dos meios para realizar um ensemble desta dimensão foi o ideal para dar um paso em frente na minha forma de escrever. Acredito que a música que está a ser escrita na actualidade é uma miscelânea de estilos, géneros, influências e técnicas, e que para ser um bom intérprete é necessário ter um conhecimento musical bastante ecléctico, e também acredito que as peças que foram apresentadas neste projeto mostram de forma bastante notória este eclectismo.