A propósito de Ditados da Consciência
Ditados da Consciência é uma obra de cariz minimal repetitiva. Numa alusão à insistência da consciência de uma pessoa, ou de quase todas as pessoas, esta peça procura indagar, de um modo subjectivo, a dicotomia entre motivos verdadeiramente repetitivos, quais uma consciência um tanto ‘robótica’ do zeitgeist em que vivemos, e a idiossincrasia de um ser humano revelada por motivos ou frases melódicas, que se sobrepõem, ou não, a esse contínuo ascendente social, ou moral, sobre a individualidade que define cada um de nós.
O uso da repetição na composição musical é transversal à História da Música Ocidental. Começou desde a sua germinação, e foi assumindo diferentes formas até aos dias de hoje, onde é, emblematicamente, associado à corrente minimalista e aos estilos de música popular.
A repetição constitui-se como técnica capaz de solidificar a estrutura musical, seja ela micro- (ao nível de pequenos acontecimentos musicais como ritmos ou melodias), ou macro-estrutura (relacionada com secções de uma composição). É útil, por exemplo, no sentido de estabelecer motivos e âncoras que ajudam a unificar uma melodia, pois remete a percepção musical, também, para o campo da memória.
Segundo Levitin, a memória afecta a experiência musical, de tal modo, que poder-se-á dizer que sem memória não haveria música. A música é baseada na repetição, e resulta porque o ouvinte é capaz de lembrar as notas que acabou de ouvir, e estabelecer uma relação com as que ouve no momento seguinte. Esses grupos de notas, ou frases, poderão surgir, mais tarde, sob forma de variação, o que estimula a memória e, ao mesmo tempo, os centros relacionados com a emoção. A repetição, quando usada com mestria, é emocionalmente satisfatória para o cérebro, e torna a experiência musical agradável aos nossos ouvidos [1].
Quando a repetição é usada de modo menos eficiente, poderá ter um efeito contrário. Aliás, Adorno critica o uso da repetição como sendo algo de psicótico e infantil, e apelida os processos rítmicos de Stravinsky, do uso do ostinato, como algo que lembra o plano de uma condição catatónica [2].
Independentemente das opiniões sobre estética musical que se possam tecer sobre o uso da repetição, ela está, mais ou menos, sob uma ou outra forma, presente nos processos de construção musical, e é preponderante na sua estrutura.
Para Schenker, a característica mais “acutilante e distintiva” da técnica musical é, de facto, a repetição catatónica [3]. Por seu lado, Boulez defende que um grande nível de interesse na repetição e variação (analogia e diferença, reconhecimento e o desconhecido) é característico de todos os compositores, particularmente, os contemporâneos, e que a dialética entre esses dois estados dá origem à forma musical [4].
Também Schönberg faz a sua distinção entre o que é repetição exacta e repetição variada. Segundo este, a primeira inclui transposições, inversões, retrogradações, diminuições e aumentações, enquanto na segunda existe um processo de variação, em que são modificados alguns elementos, e preservados os mais importantes ou definidores do motivo em questão [5].
O uso da repetição é transversal aos mais de mil anos de História da Música Ocidental. Desde a génese, em que começou por servir, simplesmente, como técnica auxiliar de memória [6], revelou-se, naturalmente, eficaz e importante a um nível micro-estrutural. A repetição de secções macro-estruturais teve o princípio, igualmente, nos primórdios da Música Ocidental, e foi desde então que se afirmou como factor estruturante ao nível da forma.
Na Idade Média, este tipo de repetição estrutural tornou-se recorrente na música profana, enquanto na música sacra o uso da repetição focou-se nos modos rítmicos, e posteriormente na isorritmia. Posteriormente, na Renascença, as técnicas de imitação foram sendo desenvolvidas, havendo, portanto, uma tendência para o uso da repetição ao nível micro-estrutural.
Falar de forma é falar de repetição. Sem repetição de secções, não faz sentido falar de forma, pois então a música torna-se num contínuo. Por isso, é natural que no Barroco, a introdução de novas formas trouxesse, novamente, e ao contrário do madrigal Renascentista, a utilização da repetição a um nível macro-estrutural [6].
Por conseguinte, a imitação desenvolveu-se na fuga, e esta na forma sonata. Fala-se do Classicismo. A repetição continuava, de forma mais ou menos exacta, mais ou menos variada, interior ou exteriormente, a ser o motor estruturante da imaginação dos compositores. “Tema e variações” poder-se-ia chamar “tema e repetições”. A mestria dos compositores focava-se em desenvolver a repetição de um tema.
O século XIX terá sido uma época de transição no uso da repetição. A ‘obsessão’ Romântica na variação dos temas levou, juntamente com a democratização musical, a uma progressiva liberalização na composição musical, algo que acompanhou o processo de dissolução do tonalismo.
Paradoxalmente, no início do século XX, foi o dodecafonismo que levou a repetição a reencontrar a sua importância como forma estruturante, embora tal não fosse, talvez, percepcionado ao nível do 2 resultado musical. Por outro lado, os neo-clássicos recuperavam, e até exageravam, as técnicas de repetição.
Esta divisão entre dodecafonismo e neo-classicismo foi acentuada na segunda metade do século XX. Se, por um lado, o serialismo integral, ou a música aleatória, assumiram uma estética marcadamente atonal e contra a percepção da repetição, o minimalismo repetitivo tomou um paralelismo com o neo-classicismo e fez da repetição um ícone da sua estética.
Caracterizado por usar poucos e simples materiais musicais, o minimalismo repetitivo recorria, naturalmente, à extensa repetição desses mesmos materiais. Esteticamente, tratava-se de uma música sem narrativa, gestos, objectivos, ou movimento no sentido de objectivos. Tinha, tipicamente, uma harmonia consonante (geralmente diatónica), e um pulso regular e invariável. O centro da escuta da música minimal era pequenas frases, figuras, motivos ou células que se repetiam, por vezes, ao longo de uma extensão temporal muito alargada, pelo que era comum a associação deste tipo de música a estados de transe e alterações ao nível da percepção.
Embora não tão marcadamente como na segunda metade do século XX, esta percepção da repetição, e sua consequência estética, esteve presente ao longo da História da Música Ocidental. Se, por um lado, os modos rítmicos eram facilmente percepcionados pelo ouvinte, tal não era tão patente no posterior moteto isorrítmico, dadas as diferenças ao nível temporal na sua concepção. Se uma fuga, ou uma forma sonata, partiam de elementos e da sua repetição, até que ponto se conseguia efectivamente percepcionar a complexa modificação do tema original? Se o dodecafonismo e serialismo eram, na sua génese, tão repetitivos, como era tão diferente a sua percepção?
O uso da repetição, embora em diferentes moldes ao longo do tempo, é uma presença marcada, quer pelo seu uso declarado na forma, na imitação, na composição temática, ou no minimalismo repetitivo, quer pela sua imperceptibilidade, mas fundamentalmente estruturante existência, no dodecafonismo, ou no serialismo, embora também em épocas anteriores através da complexidade da sua variabilidade. O nível de clareza do uso da repetição varia, não só ao longo das várias épocas e correntes, como também de compositor para compositor, de obra para obra.
A música vive de equilíbrios e desequilíbrios. A repetição é uma forma directa de dar solidez a uma estrutura, mas é também a variação que a embeleza. O modo como se evidencia ou mascara esse 3 uso da repetição depende da época e do compositor em si, e está fortemente ligado à estética da música, tal seja no modo como se tenta evidenciar a mestria da variação de um tema Clássico, como na exasperação de um tema Romântico, ou na recusa de Boulez, e na aceitação de Reich.
REFERÊNCIAS
[1] Levitin, Daniel J. (2007). This is Your Brain on Music: The Science of a Human Obsession.
[2] Adorno, Theodor (1948). The Philosophy of Modern Music.
[3] Kivy, Peter (1993). The Fine Art of Repetition: Essays in the Philosophy of Music.
[4] Campbell, Edward (2010). Boulez, Music and Philosophy.
[5] Schönberg, Arnold (1982). Fundamentals of Music Composition.
[6] Taruskin, Richard (2009). The Oxford History of Western Music.