A obra foi criada durante a leitura e sob a inspiração do romance de Valter Hugo Mãe, “A Desumanização”. O livro acompanha a tragédia de uma família que perde uma das suas filhas e o processo que é desencadeado após este acontecimento, principalmente na vida e sob o ponto de vista da irmã gémea. Este é um conto maravilhosamente escrito pelo autor e muito imaginativo no tratamento da sua forma, traços e contornos. Onde é apresentado ao leitor um acontecimento que é continuamente tratado, recontextualizado, retratado e recontado por outras personagens, ao mesmo tempo que a densidade da história vai aumentando. Esta tornou-se a inspiração para uma ideia musical bastante concreta, em que a utilização de um material inicial – um “acontecimento” caracterizado por uma célula rítmica com 5 notas – ainda que inocente, sofrerá alterações na sua estrutura através de pequenas transformações e transfigurações graduais, despoletando novas perspectivas e novas paisagens. O processo que sucede a célula principal da peça alterna sempre entre o tratamento da nota solo, a utilização da simultaneadade de sons através de ataques repentinos e a “tentativa” de uma melodia. Esta melodia “tentada”, ou como que sendo ensaiada, é ouvida na secção do meio – rapidamente calada por mais um acontecimento que catapulta a música para outro local – e no final da obra, que após interrupções sucessivas de acontecimentos nunca é ouvida totalmente, precipitando o final. Aliás, como o próprio autor escreve: “Um coração por ocarina faria todo o sentido do mundo. Possa ser esse o destino de cada um, amadurecer assim o coração de percussão a instrumento de sopro. Ensaiar uma melodia até ao fim”.
Fábio Cachão