A propósito de "A Pedra de Sísifo"
A Pedra de Sísifo foi escrita em novembro de 2016, este texto, em Janeiro de 2019.
É portanto, com alguma distância que escrevo sobre a peça. Com isto, ressalvo que quem escreve o texto de 2019 pensa de maneira diferente de quem escreveu a peça de 2016. É esta distância entre mim (2019) e o outro (2016) que me permite fazer uma análise às motivações estéticas que resultaram em A Pedra de Sísifo.
1.
No 2º andamento do seu 4º Concerto para Piano, Beethoven alterna entre o fortíssimo das cordas em oitavas, e o piano em pianíssimo. As cordas vão apaziguando, acabando o andamento com o motivo inicial em pianíssimo. A.B. Marx, um dos biógrafos de Beethoven, associa o andamento ao imaginário de Orfeu e ao episódio do amansar das Erínias.
O gesto/ideia principal da Pedra de Sísifo partiu de uma inversão da peça de Beethoven: o piano é o criador e o catalisador de um outro — a criatura (representada pelas percussões).
2.
A Pedra de Sísifo foi escrita para ser dançada pela dançarina Tânia Luiz. Muito do que nos unia era o fascínio por alguns conceitos estéticos japoneses, principalmente o ma.
Ma pode ser definido como o espaço-entre, um vazio cheio de possibilidades que dá a forma a um todo. Temporalmente, o silêncio e a ressonância têm uma relação forte com o ma, não como ausência de algo, mas o principal marcador de ritmo. A Pedra foi escrita com esta atitude em relação ao tempo e ao som. Também a composição rítmica foi inspirada na música do teatro Noh, onde existem várias pulsações simultaneamente.
3.
Nesta peça, não se utilizam figuras rítmicas no seu valor tradicional (excepto nas págs. 5, 6 e 7). Às figuras rítmicas tradicionais são-lhes apropriadas o seu valor psicológico para se distinguir entre figura curta, lenta e o seus meios termos. O valor de cada figura é definida pelo seu espaçamento na pauta e a sua relação com as figuras de outros intrumentos. Desta forma, intenta-se que o ma seja procurado de forma activa pelos intérpretes.
O compositor romeno Iancu Dumitrescu, numa entrevista com Tim Hodgkinson em 1997, distingue diferentes abordagens ao tempo:
You might say that in Western thought, there is an emphasis on external time, and that in Eastern thought there is an emphasis on internal time. This second kind of time is more cyclical, more linked to the body, the experience of being alive in a body. […] I realised that Western culture is only aware of a small part of a much wider rhythmic conception based in biological rhythm, and the notion of feedback in information theory. Western musical culture has succeeded in abolishing real pauses. If you listen to Beethoven, the thinking is actually all continuous; there is this projection of an external meter that always carries on, even when the music is taking little breaths between the notes. But this is just one possibility. It is not necessary to coordinate music only by meter.
Em A Pedra de Sísifo existe uma afinidade para com o tempo interior que Dumitrescu nos fala, e a partitura faz uma tentativa de remeter a essa temporalidade.
Ainda na mesma entrevista a Dumitrescu:
I found a kind of proportionality between the act of playing a note, and the pause which follows it. There is an alternation of activity and rest. This is biological, the rhythm of physical movement, systole and diastole, the heart, the step, tension and then relaxation of muscle. […] There is a proportion between action and inaction.
Dumitrescu, Iancu (1997)
Esta proporção entre acção e inacção, ataque e ressonância, positivo e negativo, é nuclear na concepção da peça. A própria macro-forma é composta pela oposição de duas partes que seguem este princípio de proporcionalidade: a primeira, em que existem contrações, expansões, distenções, saturações, etc. — thesis, a acção e o positivo; na segunda, suspensão, ressonância e estaticidade — arsis, a inacção e o negativo.
João Caldas