Métrica, harmonia e forma – em busca de um Quarteto de Cordas
Face a uma formação de tal modo sobrecarregada de história, abundante nas suas conotações individuais e estilísticas – de Haydn e Mozart, de Beethoven e Schubert a Brahms, à Segunda Escola de Viena e a Bartók… – sobrevem hoje uma impressão de quase extemporaneidade ao aceitarmos compor para quarteto de cordas.
O compositor pode assumir toda ou uma parte da história e da tradição que o precedem ou, pelo contrário, recusá-las num acesso de niilismo (por ato singular ou doutrina estética), procurando fazer delas tábua rasa. As duas opções – ou atitudes – encarnam de resto uma oposição de base que articula uma parte fundamental da música europeia na segunda metade do século XX: oposição entre continuidade histórica e rutura, entre a aceitação de um pensamento ancestral que se torna necessário renovar ou reinventar, e a negação apriorística desse pensamento.
Em qualquer dos casos, por via de uma continuidade (na qual nos situamos) ou pela necessidade de uma rutura, face a uma formação de tal modo sobrecarregada de história, abundante nas suas conotações individuais e estilísticas, mesmo aceitando o peso de uma tradição há que reformulá-la tanto quanto possível, procurar obstinadamente novas formas de escrita, novas lógicas de repartição e de conjugação entre os 4 instrumentos em cena, há que procurar reinventar o Quarteto – sem uma tal utopia enquanto limite, como enfrentar o peso de tantos paradigmas?…
Partindo da constituição instrumental no seu lado mais abstrato, no seu lado puramente quantitativo, a composição do meu Primeiro Quarteto[1], assentou, desde o início, num trabalho em torno do número 4, numa reflexão sobre as suas aplicações possíveis às várias componentes da escrita, uma avaliação das ramificações e desenvolvimentos que a partir dele se podem operar, em suma, um estudo de como uma grandeza quantitativa e simbólica pode contaminar todos os níveis de uma poética musical – da combinatória instrumental à construção rítmica e métrica, das densidades contrapontísticas ao tecido harmónico e ao percurso formal da obra na sua globalidade.
A primeira aplicação do 4, enquanto grandeza simbólica, encontra-se assim diretamente ligada ao plano intervalar onde, efetivamente, a 3a maior (que representa 4 meios tons, 4 unidades no sistema temperado) surge como intervalo fundador de todo o tecido harmónico, oferecendo à globalidade da obra uma sonoridade bastante particular.
A este nível, como a outros, a adoção desta grandeza constituiu um desafio, na medida em que cada uma das minhas obras precedentes contém sempre núcleos intervalares fortes, instaurando funcionalidades harmónicas hierarquizadas, nas quais a 3a maior ocupa invariavelmente posições de segundo plano. Ao assumir aqui a preponderância deste intervalo, impus uma transformação de fundo em termos de sonoridade, assim como, desde logo, uma mutação sensível nos meus reflexos básicos de escrita.
A partir da preponderância vertical do 4 (3a maior), dois princípios vieram modelar o plano harmónico no seu conjunto: todo e qualquer acorde ao longo da obra deveria, por um lado, conter sempre 4 notas e, por outro lado, integrar sempre pelo menos uma 3a maior. Distinguem-se assim 4 famílias de acordes, definindo-se a identidade de cada uma delas em função da posição ocupada, no interior de cada acorde, pelo intervalo fundador (Fig. 1).
No seio de cada uma destas famílias, escolhi um número variável de acordes, em função da sua sonoridade individual e de uma determinada lógica de encadeamento. Selecionei ao todo um conjunto de 32 acordes, transpostos e ordenados de um modo fixo, formando um cantus firmus (Fig. 2) que condiciona, segundo técnicas e estratégias de escrita bastante diversas, a globalidade da construção harmónica da obra.
Por outro lado, a evolução interna do próprio cantus firmus, assenta na ideia de um afastamento progressivo a partir de um acorde inicial, um “acorde modelo” – acorde α – baseado na tripla sobreposição sobre si mesmo do intervalo de base, conduzindo àquilo que no sistema tonal se define como um “acorde aumentado”, particularmente recorrente em Wagner e Liszt.
Pela sua conotação histórica e pela presença da 8a entre as suas notas extremas (intervalo em geral ausente da minha linguagem harmónica), este acorde surge essencialmente a um nível estrutural, sendo raramente utilizado de uma forma diretamente audível enquanto objeto. Trata-se de um modelo, a partir do qual se desenvolve a progressão harmónica do cantus firmus; e, enquanto modelo estrutural (estruturante), a sua aparição direta e percetível no desenrolar da obra assume um carácter quase simbólico. Na realidade, ouvimo-lo apenas em duas ocasiões: no início, de um modo passageiro e dissimulado, e no final, de forma prolongada e insistente, fixando em si uma harmonia totalmente imóvel.
Estas duas aparições do “acorde modelo” constituem dois pontos de apoio do percurso formal e harmónico da obra que, na sua primeira metade, sensivelmente, evolui para as zonas mais afastadas do cantus firmus (acordes 1 a 32), distanciando-se progressivamente da estabilidade inicial; e que, na sua segunda metade, percorre o caminho inverso (acordes 32 a 1), partindo do grau máximo de distorção harmónica em relação ao modelo para voltar à estabilidade inicial que se traduz, nos últimos compassos, por uma total fixação da harmonia. No centro deste percurso existe um momento de resumo onde, pela primeira vez (e pela última), o cantus firmus é dado a ouvir integralmente, num desenrolar quase homofónico dos seus 31 elementos – o 32º constitui o primeiro acorde da secção seguinte.
Do mesmo modo que, no plano harmónico, a aplicação do 4, enquanto grandeza abstrata e simbólica, conduziu à formação de acordes de 4 notas, no plano temporal assistiremos, por um lado, a uma subdivisão rítmica da unidade em 4 partes e, por outro lado, à constituição de períodos métricos integrando 4 unidades de tempo.
E da mesma forma que o intervalo de 3ª maior (4 meios tons, 4 unidades) é assumido como elemento estável e preponderante no plano harmónico, também a subdivisão da unidade de tempo em 4 partes, por um lado, e a conjunção métrica de 4 unidades, por outro lado, traduzem aquilo a que quase poderíamos chamar “tónicas” na edificação do plano temporal – tónicas das quais nos afastamos, por exemplo, ao longo da primeira metade da obra onde, a um distanciamento harmónico crescente em relação ao “acorde modelo”, corresponde uma perturbação progressiva da repartição da unidade de tempo em 4 partes (repartição inicialmente estável e, progressivamente, cada vez mais irregular).
Se, por outro lado ainda, examinarmos a globalidade da primeira parte do Quarteto, somos confrontados com uma alternância entre dois tipos de escrita fundamentalmente opostos, dois tempi distintivos, duas polaridades dinâmicas e, em termos métricos, à oposição entre uma construção livre e uma construção rigorosa: enquanto na primeira a duração de cada fragmento corresponde invariavelmente a uma multiplicação simples da unidade métrica (1, 2, 4, 8, 16 e 32 vezes o compasso de 4 tempos), na segunda as durações são sempre livres (Fig. 6).
Notemos ainda que esta oposição no tratamento métrico, coerente com a alternância inicial entre os dois tipos de escrita, os dois tempi e as duas polaridades dinâmicas, corresponde também a uma alternância na atividade instrumental: ao passo que as secções mais rápidas (Tempo I) traduzem uma ação solista do segundo violino acompanhado pelos três outros instrumentos (1+3), as secções mais lentas (Tempo II) desenvolvem uma escrita contrapontística entre estes três últimos, da qual o segundo violino é praticamente excluído (3+1), limitando-se a sustentar uma nota aguda em pano de fundo (um dó sustenido), quase apenas uma ressonância.
Acresce que estas secções mais lentas são constituídas por contrapontos canónicos inicialmente a duas vozes (por movimento contrário e retrógrado). No momento em que as secções mais rápidas atingem o grau máximo de perturbação rítmica e harmónica relativamente à estabilidade inicial, as seções mais lentas evoluem para uma escrita canónica a 4 vozes em contraponto duplo. Por outras palavras, a fase de maior afastamento de um dos tipos de escrita relativamente ao 4, enquanto grandeza abstrata e enquanto modelo, corresponde, noutra dimensão da poética, ao momento de maior proximidade simbólica em relação a esta grandeza: nas secções mais agitadas os planos rítmico e harmónico corrompem a preponderância do 4, nas secções mais calmas o plano contrapontístico aproxima-nos dele.
Em determinadas dimensões, a contaminação da escrita por esta grandeza puramente simbólica e abstrata torna-se praticamente invisível, em termos imediatos; noutras, pelo contrário, sobretudo quando aplicada a funções de repartição, emerge e revela-se de modo quase evidente. É o que acontece, nomeadamente, no plano formal – e foi por aqui que começou a desenvolver-se o projeto global da obra.
A ideia inicial foi a de procurar uma projeção mais ou menos direta entre a repartição instrumental e o desenrolar da grande forma. A peça deveria dividir-se em 4 partes e, em cada uma delas, um dos 4 instrumentos deveria aparecer como solista. Neste sentido, acabaria por se instalar quase uma inversão entre a hierarquia inicial do Quarteto, enquanto formação clássica, e a constituição progressiva da presente forma, que começa com uma preponderância clara do segundo violino, passando em seguida por uma secção mais curta onde a viola assume o papel central, prosseguindo por uma vasta heterofonia a partir da linha solista do violoncelo, com uma sonoridade extremamente particular, praticamente sempre no limite agudo do instrumento, e terminando por uma curta cadência do primeiro violino. No centro da forma, uma secção tutti restitui-nos, como acima referi, o cantus firmus, a matéria básica de toda a construção no seu estado inicial.
À medida que o trabalho de composição se desenvolveu, no entanto, este esquema tornou-se algo mais complexo, não apenas pelas inúmeras ramificações, retornos, desenvolvimentos, migrações da matéria de um ponto para o outro, etc., como também pelo próprio encadeamento: se, por um lado, as duas primeiras partes aparecem efetivamente justapostas no tempo, com apenas uma curta secção mais ou menos híbrida, de diálogo entre o segundo violino e a viola, já as duas últimas partes, por outro lado, aparecem emparelhadas, sendo a primeira parte da heterofonia do violoncelo interrompida por uma candência não acompanhada do primeiro violino, após a qual o violoncelo retoma o seu papel solista sendo que, no final, o primeiro violino volta a enunciar a mesma cadência mas, desta vez, com o acompanhamento dos três restantes instrumentos, articulando espaçadamente uma harmonia totalmente imóvel que, como referi, nos restitui o acorde α e a estabilidade estrutural para a qual tende (e da qual parte) toda a matéria de base. Neste ponto, o ciclo fecha-se sobre si mesmo, a estrutura volta ao seu estado inicial anunciando o final da obra.
A figura seguinte esquematiza a articulação global da grande forma (os algarismos romanos correspondem à numeração dos 32 acordes do cantus firmus).
Encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian, o meu Primeiro Quarteto foi composto entre Fevereiro e Abril de 2003, sendo dedicado a Barbara e a Konrad Stahl.
Pedro Amaral
Notas de rodapé
[1] Composta em Paris, em 2003, a peça teve uma antestreia pelo Quatuor Parisii num concerto-conferência em Ivry sur Seine, a 18 de maio no mesmo ano, e, dez dias mais tarde, a sua estreia oficial em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian. O mesmo agrupamento fez a estreia norte-americana, em Los Angeles, nos Monday Evening Concerts, a 23 de abril de 2004.