Caminha
…Foi com imenso prazer que me embarquei durantes os três meses últimos numa viagem conduzida pela brisa que deixaram em mim as palavras da Sophia. Lembro-me que, na proposta deste projeto algures em Dezembro de 2015, tentei justificar “Caminha” como uma tentativa de afastar a morte de todas as figuras enterradas no Panteão de trazendo à vida esses corpos sem vida. Ponto de partida este, que está condenado a uma problemática sem fim: como trazer à realidade corpos que nunca conheci?
Em Novembro de 2015 descobri a edição da obra poética completa da Sophia. Comprei o tal livro que levei comigo ao Panteão Nacional de Lisboa. Entrei, subi muitas escadas até ao ponto quase mais alto do edifício. Lá em cima abri o livro mas não consegui ler nada: apenas podia comtemplar a água azul do Tejo que banha Lisboa. A Sophia escreve: “abriga-te no sopro corrido e fresco do mar”; “a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado”; “a imagem do homem, do mar e da luz trouxeram à sua boca o mesmo antigo sabor de sal e de alegria”. Os sentidos constroem a lírica; o leitor, o sentir da ingénua sensibilidade. O texto “caminho da manhã” (1962) conduz esta minha música: “vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde aluz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrarás em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espada do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: Mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada. Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio.” … “Sophia a bailar no palco reencarnada através do corpo de vários atores e bailarinos; “Sophia a ler os seus próprios poemas! ” Agradecerei sempre a todos os professores a oportunidade que me deram de poder fazer parte do projeto.
Carmen Pomet