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Notas Dispersas sobre “Six Portraits of Pain”
1. Esta peça tem uma relação com seis textos que escolhi. Não é uma peça programática no sentido habitual do termo (como poderia ser?) mas os textos habitam a obra. Estão escritos na partitura e aos músicos é pedida a sua leitura durante a execução. Dessa forma, cinco dos seis textos escritos na partitura existem na obra enquanto presença consciente nos músicos, mas não existem enquanto canto ou fala para os ouvintes. A única excepção é um fragmento de um poema de Anna Akhmatova. Os fragmentos que seleccionei provêm de diversos tipos de testemunhos escritos mas nem todos “literários” no sentido estrito – cartas a amigos, poemas, discursos, frases de livros - e expoêm diversos tipos de sofrimento existencial: perigos do pensamento livre, da dissidência, a perplexidade face ao estado do mundo, traumas decorrentes do inenarrável vivido e (sempre) a presença da morte. Como diz uma parte do texto de Thomas Bernhard “Esta dor constituíu-nos. Esta dor é agora o nosso estado de espírito”. A dor tanto é a dor poética como a dor descrita, vista, sentida ou imaginada...
2. A minha música é inquieta: interessam-me os gestos, a captação de forças, de intensidades. Morton Feldman dizia que para ele tudo era “object trouvé”, mesmo aquilo que ele pensava ter inventado. Os objectos que eu encontro são diferentes, mas às vezes caio igualmente na ilusão de os ter inventado. Há varios anos que falo de “objectos” musicais. E neste caso encontrei também uns poemas. Seria estranho que trabalhar tanto tempo com estes textos ao lado ou na memória não tivesse tido consequências, presenças, na música e no discurso. Tenho algumas convicções sobre este aspecto, poderia partilhá-las, mas nada me garante que não haja outras que me escapam. Escapam-me a mim, mas não escapam à peça.
3. Os Six Portraits of Pain são: 1. Espinosa/Deleuze 2. Thomas Bernard 3. Manuel Gusmão I 4. Akhmatova 5. Cadenza sopra Spinoza 6. Gusmão II e Coda: Paul Celan.
4. Os textos são sublimes. O primeiro que escolhi, de Gilles Deleuze - “Conta-se que Espinosa conservava o casaco rasgado pela faca assassina para se lembrar que o pensamento nem sempre era amado pelos homens” – é, de certo modo, o mais importante porque (me) lançou a obra para a questão fundamental da liberdade do pensamento, da arte, da política e das diversas repressões que marcam as suas histórias. Hesito ainda sobre a inclusão de todos os fragmentos literários nestas notas. A possibilidade da sua leitura poderia orientar a percepção da obra para a procura de uma “significação literal” que não existe, que não pretendi nem quero provocar inadvertidamente.
5. Principalmente porque a relação entre os textos e a música não é linear. Num dado momento tomei consciência de que a estrutura formal da peça apresentava relações internas mais complexas do que a sucessão de Seis retratos/andamentos, como se
durante o trabalho composicional cada texto/retrato/música tivesse ultrapassado a sua localização particular numa página e afectasse o todo de forma irremediável. Estabeleci uma rede de relações entre estes elementos e é dela que deriva a narrativa da peça.
6. Tenho uma posição peculiar em relação a concertos; o carácter habitual atlético- virtuosistico do papel do solista não me atrái. Frequentemente cede-se à tentação exibicionista. Tento sempre outro tipo de solução. Nesta peça há um solista, o violoncelo, dois solistas secundários, dois violinos, e ainda três percussionistas como dramatis personae musicais. Esta divisão (1+2+3=6) tem igualmente uma relação com os 6 retratos e uma tipologia privada das dores.
7. Esta peça dura entre 26 e 28 minutos. Depende dos tempos que forem realizados. Foi encomendada pela Casa da Música e estreada em 2005.
António Pinho Vargas, Março de 2005
Partitura atualizada disponível em: https://editions-ava.com/pt/six-portraits-of-pain-2
Textos dos Six Portraits of Pain:
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1 - Espinosa
"Conta-se que Espinosa conservava o casaco rasgado pela faca assassina
para se lembrar que o pensamento nem sempre era amado pelos homens."
Gilles Deleuze, Spinoza
2- Thomas Bernhard
"Durante este meio século todos nós
não fomos mais do que uma grande dor.
Esta dor constituiu-nos. Esta dor é agora
o nosso estado de espírito"
3- Manuel Gusmão
" e aberta ficou a boca
...os assassinos nem sequer lha fecharam..."
4- Akhmátova
Passei dezassete meses nas bichas da cadeia de Leninegrado.
Uma mulher atrás de mim, perguntou-me ao ouvido [...]
( ali toda a gente sussurrava):
Pode contar isto? Respondi: Posso.
Então, uma espécie de sorriso deslizou por aquilo
que outrora fora o rosto da mulher.
5 - Cadenza sopra Spinosa
6- Manuel Gusmão II
"Cada parede a que chego é agora sempre a última..."
Coda: Paul Celan
Vivemos sob céus sombrios e... existem poucos seres humanos.
Talvez por isso existam também tão poucos poemas.
As esperanças que me restam não são grandes; tento
conservar aquilo que me restou.
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Cinco sensações… Dor. Histeria. Paz. Ansiedade. Liberdade. Todos nós já as vivemos, já as sentimos, já as ouvimos… Individualmente, ou ao mesmo tempo, estas sensações já se apoderaram de nós! E é assim, com estas cinco sensações que devemos ouvir esta música, pois cada andamento tenta retratar cada uma delas…a angústia da dor, a inquietação da histeria, a calma da paz, o nervosismo da ansiedade, e a inconstância da liberdade…
Ana Catarina Barros
No fundo do nosso ser deparamo-nos muitas vezes com sensações e desejos ocultos que nunca pensámos fazerem parte de nós. Esta peça é a descoberta de uma dessas entranhas, desde a estranheza e receio inicial até à aceitação de que esta também faz parte de quem somos.
André Cipriano
Primavera, Verão, Outono, Inverno. E a Morte. Aqui falar-se-á das já conhecidas quatro estações do ano (e da vida de um qualquer ser). No entanto, retratar-se-á ainda uma quinta estação, a Morte, que se retrata em algo mais abstracto, talvez algo fora de qualquer contexto cíclico. Porquê? Aqui fica a pergunta que tanto incomoda uma pessoa.
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