• Título da obra: Quatuor à cordes n. 1
  • Partitura: Quatuor à cordes n. 1
  • Ano de Composição: 2003
  • Instituição/Pólo: Universidade de Évora
  • Categoria: Pequeno ensemble (2-6 exec.)
  • Instrumentação detalhada: Quarteto de Cordas
  • Duração Total: 24'04''
  • Duração: 20 - 30 min
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Pedro Amaral | Universidade de Évora

 

 

Face a uma formação de tal modo sobrecarregada de história, abundante nas suas conotações individuais e estilísticas – de Haydn e Mozart, de Beethoven e Schubert a Brahms, à Segunda Escola de Viena e a Bartók… – sobrevem hoje uma impressão de quase extemporaneidade ao aceitarmos compor para quarteto de cordas.


O compositor pode assumir toda ou uma parte da história e da tradição que o precedem ou, pelo contrário, recusá-las num acesso de niilismo (por ato singular ou doutrina estética), procurando fazer delas tábua rasa. As duas opções – ou atitudes – encarnam de resto uma oposição de base que articula uma parte fundamental da música europeia na segunda metade do século XX: oposição entre continuidade histórica e rutura, entre a aceitação de um pensamento ancestral que se torna necessário renovar ou reinventar, e a negação apriorística desse pensamento.
Em qualquer dos casos, por via de uma continuidade (na qual nos situamos) ou pela necessidade de uma rutura, face a uma formação de tal modo sobrecarregada de história, abundante nas suas conotações individuais e estilísticas, mesmo aceitando o peso de uma tradição há que reformulá-la tanto quanto possível, procurar obstinadamente novas formas de escrita, novas lógicas de repartição e de conjugação entre os 4 instrumentos em cena, há que procurar reinventar o Quarteto – sem uma tal utopia enquanto limite, como enfrentar o peso de tantos paradigmas?…

Partindo da constituição instrumental no seu lado mais abstrato, no seu lado puramente quantitativo, a composição do meu Primeiro Quarteto[1], assentou, desde o início, num trabalho em torno do número 4, numa reflexão sobre as suas aplicações possíveis às várias componentes da escrita, uma avaliação das ramificações e desenvolvimentos que a partir dele se podem operar, em suma, um estudo de como uma grandeza quantitativa e simbólica pode contaminar todos os níveis de uma poética musical – da combinatória instrumental à construção rítmica e métrica, das densidades contrapontísticas ao tecido harmónico e ao percurso formal da obra na sua globalidade.
A primeira aplicação do 4, enquanto grandeza simbólica, encontra-se assim diretamente ligada ao plano intervalar onde, efetivamente, a 3a maior (que representa 4 meios tons, 4 unidades no sistema temperado) surge como intervalo fundador de todo o tecido harmónico, oferecendo à globalidade da obra uma sonoridade bastante particular.
A este nível, como a outros, a adoção desta grandeza constituiu um desafio, na medida em que cada uma das minhas obras precedentes contém sempre núcleos intervalares fortes, instaurando funcionalidades harmónicas hierarquizadas, nas quais a 3a maior ocupa invariavelmente posições de segundo plano. Ao assumir aqui a preponderância deste intervalo, impus uma transformação de fundo em termos de sonoridade, assim como, desde logo, uma mutação sensível nos meus reflexos básicos de escrita.
A partir da preponderância vertical do 4 (3a maior), dois princípios vieram modelar o plano harmónico no seu conjunto: todo e qualquer acorde ao longo da obra deveria, por um lado, conter sempre 4 notas e, por outro lado, integrar sempre pelo menos uma 3a maior. Distinguem-se assim 4 famílias de acordes, definindo-se a identidade de cada uma delas em função da posição ocupada, no interior de cada acorde, pelo intervalo fundador (Fig. 1).

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Fig.1

No seio de cada uma destas famílias, escolhi um número variável de acordes, em função da sua sonoridade individual e de uma determinada lógica de encadeamento. Selecionei ao todo um conjunto de 32 acordes, transpostos e ordenados de um modo fixo, formando um cantus firmus (Fig. 2) que condiciona, segundo técnicas e estratégias de escrita bastante diversas, a globalidade da construção harmónica da obra.

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Fig.2

 Por outro lado, a evolução interna do próprio cantus firmus, assenta na ideia de um afastamento progressivo a partir de um acorde inicial, um “acorde modelo” – acorde α – baseado na tripla sobreposição sobre si mesmo do intervalo de base, conduzindo àquilo que no sistema tonal se define como um “acorde aumentado”, particularmente recorrente em Wagner e Liszt.

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Fig.3

Pela sua conotação histórica e pela presença da 8a entre as suas notas extremas (intervalo em geral ausente da minha linguagem harmónica), este acorde surge essencialmente a um nível estrutural, sendo raramente utilizado de uma forma diretamente audível enquanto objeto. Trata-se de um modelo, a partir do qual se desenvolve a progressão harmónica do cantus firmus; e, enquanto modelo estrutural (estruturante), a sua aparição direta e percetível no desenrolar da obra assume um carácter quase simbólico. Na realidade, ouvimo-lo apenas em duas ocasiões: no início, de um modo passageiro e dissimulado, e no final, de forma prolongada e insistente, fixando em si uma harmonia totalmente imóvel.
Estas duas aparições do “acorde modelo” constituem dois pontos de apoio do percurso formal e harmónico da obra que, na sua primeira metade, sensivelmente, evolui para as zonas mais afastadas do cantus firmus (acordes 1 a 32), distanciando-se progressivamente da estabilidade inicial; e que, na sua segunda metade, percorre o caminho inverso (acordes 32 a 1), partindo do grau máximo de distorção harmónica em relação ao modelo para voltar à estabilidade inicial que se traduz, nos últimos compassos, por uma total fixação da harmonia. No centro deste percurso existe um momento de resumo onde, pela primeira vez (e pela última), o cantus firmus é dado a ouvir integralmente, num desenrolar quase homofónico dos seus 31 elementos – o 32º constitui o primeiro acorde da secção seguinte.

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Fig.4

Do mesmo modo que, no plano harmónico, a aplicação do 4, enquanto grandeza abstrata e simbólica, conduziu à formação de acordes de 4 notas, no plano temporal assistiremos, por um lado, a uma subdivisão rítmica da unidade em 4 partes e, por outro lado, à constituição de períodos métricos integrando 4 unidades de tempo.

fig5

Fig.5

E da mesma forma que o intervalo de 3ª maior (4 meios tons, 4 unidades) é assumido como elemento estável e preponderante no plano harmónico, também a subdivisão da unidade de tempo em 4 partes, por um lado, e a conjunção métrica de 4 unidades, por outro lado, traduzem aquilo a que quase poderíamos chamar “tónicas” na edificação do plano temporal – tónicas das quais nos afastamos, por exemplo, ao longo da primeira metade da obra onde, a um distanciamento harmónico crescente em relação ao “acorde modelo”, corresponde uma perturbação progressiva da repartição da unidade de tempo em 4 partes (repartição inicialmente estável e, progressivamente, cada vez mais irregular).
Se, por outro lado ainda, examinarmos a globalidade da primeira parte do Quarteto, somos confrontados com uma alternância entre dois tipos de escrita fundamentalmente opostos, dois tempi distintivos, duas polaridades dinâmicas e, em termos métricos, à oposição entre uma construção livre e uma construção rigorosa: enquanto na primeira a duração de cada fragmento corresponde invariavelmente a uma multiplicação simples da unidade métrica (1, 2, 4, 8, 16 e 32 vezes o compasso de 4 tempos), na segunda as durações são sempre livres (Fig. 6).

fig6

Fig.6

Notemos ainda que esta oposição no tratamento métrico, coerente com a alternância inicial entre os dois tipos de escrita, os dois tempi e as duas polaridades dinâmicas, corresponde também a uma alternância na atividade instrumental: ao passo que as secções mais rápidas (Tempo I) traduzem uma ação solista do segundo violino acompanhado pelos três outros instrumentos (1+3), as secções mais lentas (Tempo II) desenvolvem uma escrita contrapontística entre estes três últimos, da qual o segundo violino é praticamente excluído (3+1), limitando-se a sustentar uma nota aguda em pano de fundo (um dó sustenido), quase apenas uma ressonância.
Acresce que estas secções mais lentas são constituídas por contrapontos canónicos inicialmente a duas vozes (por movimento contrário e retrógrado). No momento em que as secções mais rápidas atingem o grau máximo de perturbação rítmica e harmónica relativamente à estabilidade inicial, as seções mais lentas evoluem para uma escrita canónica a 4 vozes em contraponto duplo. Por outras palavras, a fase de maior afastamento de um dos tipos de escrita relativamente ao 4, enquanto grandeza abstrata e enquanto modelo, corresponde, noutra dimensão da poética, ao momento de maior proximidade simbólica em relação a esta grandeza: nas secções mais agitadas os planos rítmico e harmónico corrompem a preponderância do 4, nas secções mais calmas o plano contrapontístico aproxima-nos dele.
Em determinadas dimensões, a contaminação da escrita por esta grandeza puramente simbólica e abstrata torna-se praticamente invisível, em termos imediatos; noutras, pelo contrário, sobretudo quando aplicada a funções de repartição, emerge e revela-se de modo quase evidente. É o que acontece, nomeadamente, no plano formal – e foi por aqui que começou a desenvolver-se o projeto global da obra.
A ideia inicial foi a de procurar uma projeção mais ou menos direta entre a repartição instrumental e o desenrolar da grande forma. A peça deveria dividir-se em 4 partes e, em cada uma delas, um dos 4 instrumentos deveria aparecer como solista. Neste sentido, acabaria por se instalar quase uma inversão entre a hierarquia inicial do Quarteto, enquanto formação clássica, e a constituição progressiva da presente forma, que começa com uma preponderância clara do segundo violino, passando em seguida por uma secção mais curta onde a viola assume o papel central, prosseguindo por uma vasta heterofonia a partir da linha solista do violoncelo, com uma sonoridade extremamente particular, praticamente sempre no limite agudo do instrumento, e terminando por uma curta cadência do primeiro violino. No centro da forma, uma secção tutti restitui-nos, como acima referi, o cantus firmus, a matéria básica de toda a construção no seu estado inicial.

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Fig.7

À medida que o trabalho de composição se desenvolveu, no entanto, este esquema tornou-se algo mais complexo, não apenas pelas inúmeras ramificações, retornos, desenvolvimentos, migrações da matéria de um ponto para o outro, etc., como também pelo próprio encadeamento: se, por um lado, as duas primeiras partes aparecem efetivamente justapostas no tempo, com apenas uma curta secção mais ou menos híbrida, de diálogo entre o segundo violino e a viola, já as duas últimas partes, por outro lado, aparecem emparelhadas, sendo a primeira parte da heterofonia do violoncelo interrompida por uma candência não acompanhada do primeiro violino, após a qual o violoncelo retoma o seu papel solista sendo que, no final, o primeiro violino volta a enunciar a mesma cadência mas, desta vez, com o acompanhamento dos três restantes instrumentos, articulando espaçadamente uma harmonia totalmente imóvel que, como referi, nos restitui o acorde α e a estabilidade estrutural para a qual tende (e da qual parte) toda a matéria de base. Neste ponto, o ciclo fecha-se sobre si mesmo, a estrutura volta ao seu estado inicial anunciando o final da obra.
A figura seguinte esquematiza a articulação global da grande forma (os algarismos romanos correspondem à numeração dos 32 acordes do cantus firmus).
Encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian, o meu Primeiro Quarteto foi composto entre Fevereiro e Abril de 2003, sendo dedicado a Barbara e a Konrad Stahl.


Pedro Amaral

 


Notas de rodapé

[1] Composta em Paris, em 2003, a peça teve uma antestreia pelo Quatuor Parisii num concerto-conferência em Ivry sur Seine, a 18 de maio no mesmo ano, e, dez dias mais tarde, a sua estreia oficial em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian. O mesmo agrupamento fez a estreia norte-americana, em Los Angeles, nos Monday Evening Concerts, a 23 de abril de 2004.